A Vida a Mudar
por Jorge C Ferreira
A liberdade de ir ver o mar. A linha do horizonte e uma areia cheia de gente. Uma água mineral com limão e o olhar. Olhar a imensidão. O meu chapéu creme comprado no Equador. Os óculos escuros. O cabelo branco. Branca também está a minha pele. Branco leite. Acho que nunca estive assim.
Há o descer e o subir. Há a calçada portuguesa. Eu ando pelo meio das ruas estreitas. Atravesso a linha do comboio por um túnel. Quando era miúdo havia uma passagem de nível e uma guarda-cancela. Ainda lá está a casa. Outros tempos.
Muito tempo em casa. Muita vida parada. Esta sedentária maneira de viver. Muitas horas a dormir e muitos sonhos. A nossa capacidade de viver e reviver outras vidas. O calor. Muito calor. Finalmente noites de verão. Assim nos vamos dobrando sobre nós.
Uma esplanada à sombra e a uma rua do rio. Apenas um acrílico a separar-nos. Tudo no sítio onde o rio é mais largo. O meu querido Tejo. Tejo onde voltaram os golfinhos que eu via quando era criança. Um fresco que nos alimenta. Tudo muito perto do Terminal de Cruzeiros. Nem um barco atracado. A vista desafogada. O que a vida mudou. As saudades que eu tenho de navegar.
Antes foi Sapadores, recordar tempos antigos. Algumas ruas alindadas. Um café, muito importante para a minha vida, agora fechado. Aqui ia esperar o meu filho que vinha na carrinha da escola. Foi pela mão dele que, desta vez, fiz este percurso. Ruas de uma vida antiga. De tempos com muito tempo. Ruas onde não costumo voltar. Assim como não vou à rua onde nasci. Havia uma festa no Lux. Muita gente no terraço. Já não vou a estes sítios. A vida a mudar.
Antes tinha sido a Feira do Livro. Uma mesa duas cadeiras, dois amigos e dois livros. Foi a minha primeira vez no lugar de autor. Nunca o tinha experimentado. As minhas idas à feira do livro eram a de um leitor compulsivo. Leitor que continuo a ser. A vida a contrariar o tempo.
Obrigado às pessoas que apareceram, para conversar, ou para comprar o livro. Nunca vos irei esquecer. Eu a pensar que ia ali ficar sozinho com o José Luís Outono, e não. Vocês fizeram questão de nos ir visitar. Eternamente grato. Afinal somos amigos da leitura e dos livros.
As noites estão quentes. Noites de verão. Olho para a palmeira e nem uma folha mexe. Os candeeiros, da falsa fonte do pátio, ardem de luz. As mesas e as cadeiras esperam por nós. Os gatos perseguem-se, saltam quintais, miam num choro prolongado.
São apresentados livros de forma virtual. Não há a cerimónia da entrega do livro. A festa do encontro entre o autor e os leitores. Os abraços apertados, os beijos. Tudo adiado. Agora anda tudo à cotovelada. Mascarados com óculos embaciados. Algumas luvas escondem as unhas maltratadas.
Um rapaz toca viola sentado num muro. De repente canta sem cerimónia:
“…Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não…”
Reparo que não tem máscara e está a usar a noite de outra maneira. Está só. Passa muita gente e olha. Vou seguir este caso com atenção.
«Sabes que gostei e não gostei que fosses à Feira do Livro.»
Fala da Isaurinda.
«Foi uma experiência boa. Cuidei-me como tu me aconselhaste.»
Respondo.
«Espero que sim. Não tenho muita confiança em ti.»
De novo Isaurinda e vai. A mão a fazer figas.
Jorge C Ferreira Setembro/2020(267)
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.
Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira
Texto emocionante. Vaguear por lugares conhecidos, num tempo desconhecido. Um tempo em que os olhares se cruzam por detrás das máscaras. Memórias de vidas vividas, de abraços sentidos, que se perdem no tempo. ” A volta à vida à volta do mundo” é um livro extraordinário. O autor merecia o melhor e o maior abraço.
Obrigada meu amigo por continuar a resistir e ajudar a resistir.
Um abraço.
Obrigado Eulália. A importância de resistir. De novo saber fazê-lo, ter coragem. Abraço enorme.
É mesmo, Jorge, ‘a vida a mudar’. Ler-te é como seguir-te por esses caminhos da saudade. As tuas palavras remexem lembranças e estimulam emoções. Um dia voltaremos a abraçar, a beijar, a demonstrar ternura, afecto. Espero poder mostrar-te o azul profundo do meu mar, oferecer-te um ramo de flores do campo ou do meu jardim. Ouvir o canto das cagarras em noites de luar. Enquanto espero vou lendo os teus belos textos. Comentá-los, desculpa, faltam-me as palavras, mas o coração sente e o silêncio também fala.
Beijos e abraços, meu amigo. Obrigada por tanto.
Obrigado Manuela. Sim, quero acreditar que voltaremos aos afectos e à ternura. Quando? Não sabemos. Grande abraço.
É como um mágico.
Retira da cartola negra uma longa trança de estórias. Entremeadas umas nas outras. As rotinas e a fuga. É neste desvio que se deixa levar por novas vivências. Outras. Do antes ao agora. O passar de leitor compulsivo a autor. Metamorfose.
Uma narrativa de viagens que liga a realidade a uma fantasia inédita bem como a um certo romantismo poético que nos mantém prisioneiros de páginas e páginas de uma aventura ao redor do mundo.
Encontrei um simpático poeta de Outonos e um escrevinhador de olhar perscutador e vivo, em amena e mascarada cavaqueira. Num parque onde livros são a principal atração. Travámos um breve diálogo e eu continuei a minha caminhada entre esta que é uma das minhas paixões.
Viver rodeada de livros. Já lhes perdi a conta. Não há canto da casa onde não se encavalitem. Tratam-se bem. Educadamente. São alimento d’emoções, vício sem tratamento e albergue de muitas e diversificadas vidas.
Quanto ao mágico? Ouvi dizer que continua no seu ofício de saber, perícia e entretenimento. Pode não ser muito bem pago mas cuida, como ninguém, de corações partidos, almas sem paradeiro e oferece liberdade em mil e um alfabetos que já desbravaram outros tantos mapas, roteiros e cartas de navegação.
Como se chama?
Jorge C. Ferreira.
Obrigado Mena. Que bom foi ter a tua alegria na Feira do Livro. Tenho as cartas de navegar sempre à mão. Espero que ainda me sejam úteis. Abraço imenso.
É verdade! A vida a mudar… mas espero que esta mudança abrupta a que nos tivemos de adaptar seja uma mudança de curta duração. Este ano atípico ficará na história. Aguardemos 2021 com esperança. No próximo ano vais usufruir do sol, do Mar e das viagens ainda com mais prazer. E os abraços vão ser ainda mais fortes.
Até lá deixo-te um abraço virtual.
(Sabes que não estive por cá no período da feira do livro mas tive pena de não te ter podido visitar.)
Obrigado Maria, Tanta coisa a mudar. Saudades da vida. Esperemos que tudo vá pelo bom caminho. Viajei contigo através das tuas fotos. Abraço. grande
O mundo à nossa volta altera-nos os hábitos, prende-nos no isolamento. Uma escapadinha ao café para saborear a bica, ver caras que também se atrevem sair para tomar ar.
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. Também é essa a minha vida. A pouco mais me atrevo. A Feira do Livro foi um extra. Abraço
Mais uma bela crónica que dói de tão crua. A realidade, quase, começa a instalar-nos na desesperança. A tristeza dos dias sem beijos, sem “circulação” inscritos na nossa pele “branca”. Tanta morte a acontecer. Tanta impotência. Até quando?
Obrigado Isabel. Sim, minha amiga, a impotência que sentimos é o pior. O não sabermos como e quando. Grande abraço.
Tudo muda. Havemos de viver e reviver muitas situações. Ainda teremos escolhas múltiplas na cartola do nosso pequeno universo individual. Um abraço.
Obrigado Sofia. A tua esperança é um bálsamo. Ainda gostava de te abraçar. Este abraço que te envio é virtual.
Quero acreditar no abraço apertado e beijar a pele morena, bronzeada do sol e do mar.
“ A volta à vida à volta do mundo”, o teu primeiro livro esteve na feira do livro e tu como autor. Confesso que tal como a Isaurinda “gostei e não gostei”, como a entendo, querido Jorge. Mas também te entendo, a ti, meu querido amigo e poeta maior. Como diz a canção … há sempre alguém que resiste… há sempre alguém que diz não…” Precisamos de ti, de pessoas como tu, que resiste, que diz não, que nos faz pensar um pouco, que nos faz falta à saudade…
A vida pode mudar , mas a tua verticalidade e paixão por ela permanecem iguais.
Obrigada por seres quem és e estares aqui.
Abraço de muita ternura e admiração.
Cristina
Obrigado Cristina. Que bem escreveste. Vamos resistir e acreditar. Ternura é necessária. Abraço grande.
Mesmo à tua maneira, uma crónica sobre ” A Vida a Mudar “. Tens de concordar que para ti, alguma coisa mudaria sempre de um dia para o outro. Digamos, depois de te lermos e conhecermos, que és demasiado inquieto para os dias serem iguais. Tinhas a tua vida organizada, sim. Tudo absorvias dos espaços onde a tua vida decorria e, todas as experiências, somadas à tua magia, eram o palco do que, escrevendo, nos dás diariamente. Nesta tua crónica és tão ” TU”. Recordações vêm ter contigo. O teu filho a dar-te a mão ao vir da Escola. E foi assim que, mão na mão, o ” sentiste ” ao procurar o teu lugar. As conversas podem manter-se mas, querido Jorge, quando será que voltam os abraço, beijinhos, uma ” festa “.? Tiveste o teu LIVRO( sim, com maiúsculas ) na ” Feira do Livro, mas com ” apresentação virtual “. A falta que fazem os abraços e beijos de parabéns.. A máscara, indispensável, torna-nos ” outros “. Oxalá que o ” tal de vírus “, agressivo, não ataque mais. Breve voltaremos a poder estar com os amigos “à nossa maneira “. Porta-te bem. e vamos cantando canções de combate, porque o ” combate ” voltou à VIDA, agora em forma de vírus.. Estou com a Isaurinda nas recomendações.Um beijinho para ela. Beijinhos amigos e ternos da tua amiga/ irmã. Ivone.
Obrigado Ivone. Obrigado por tudo e por tanto. Pelos teus belos comentários a que só posso manifestar a minha gratidão. Um abraço imenso minha amiga/irmã.